17 de dez. de 2010

Recordar é viver - Matéria da Revista Veja de 1983 sobre o pesadelo da prestação da casa própria

Brasileiro tem memória curta, isso é fato. Talvez outros povos de outros países também, mas igual aqui acho difícil. A declaração que achei mais interessante e atual na reportagem é a seguinte: "Tenho um salário mensal bruto de 350.000 cruzeiros. A prestação deverá levar 230.000, mas mesmo assim continuo achando que pagar aluguel é jogar dinheiro fora", diz o engenheiro eletrônico Flávio Selmo Júnior, 30 anos, casado, com dois filhos.
Esse mesmo engenheiro resolveu alugar o apartamento e ir morar com os pais para "manter sua dignidade e não pagar aluguel". Será que estamos assistindo ao mesmo filme?




www.veja.com.br

29 de junho de 1983 
O sonho interrompido
Esmagada por um aumento de 128%
nas prestações da casa própria, a
classe média reclama, se organiza
e ameaça enfrentar o BNH
A partir desta sexta-feira, 1º de julho, o fantasma do reajustamento de 128% nas prestações das casas próprias começa a bater à porta dos 3,6 milhões de mutuários do Sistema Financeiro da Habitação. É uma pancada forte, insuportável para boa parte dessa multidão que ocupa dois de cada dez imóveis urbanos do país e, aos poucos, reclama, organiza-se e protesta. Na segunda-feira da semana passada, setenta mutuários paulistas amanheceram agressivamente em Brasília. Foram para a porta do Ministério do Interior, sob cuja jurisdição está o Banco Nacional da Habitação, levando faixas com os dizeres “130 Não, BNH Ladrão", ou "Queremos Moradia, Abaixo a Mordomia". Postados à frente de um cartaz onde um Dragão-BNH está prestes a devorar um infeliz mutuário, exigiram que o ministro Mário Andreazza os recebesse, gritando da rua: "Desce, Andreazza". O ministro do Interior desceu e, mais uma vez, prometeu que o governo fará o possível para baratear os 128%.
Apertado entre a questão social e a severidade da conta que prevê o cálculo dos reajustes anuais das prestações com base no valor das UPCs - Unidades Padrão de Capital, a moeda contábil do BNH, cujo valor é vinculado ao das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional -, Andreazza promete sem saber se poderá fazer alguma coisa. Enquanto isso, pipocam por todo o país manifestações patrocinadas pelas recém-nascidas Associações de Mutuários. No Rio de Janeiro, a associação da Barra, que abrange os elegantes bairros da Barra da Tijuca, São Conrado e Recreio dos Bandeirantes, começou a estudar uma forma de recorrer à Justiça contra os 128%. Em Curitiba, a Associação de Mutuários se reuniu no auditório do Colégio Estadual do Paraná e decidiu iniciar os trâmites jurídicos. De outro lado, a Ordem dos Advogados do Brasil já reuniu uma equipe de vinte advogados para estudar o problema e assistir os interessados.
Fora do campo das pesquisas legais, a Associação de Mutuários de Colina, um conjunto na periferia de Porto Alegre, decidiu há mais de dois meses que suas 2.000 famílias suspenderiam o pagamento das prestações.
"Acredito que nove em dez devedores seguirão a decisão", diz Gilberto Sadoski, presidente da Associação dos Mutuários. Do outro lado da caixa, no Recife, o diretor da Companhia de Habitação Popular de Pernambuco - Cohab -, Frederico Carvalho, alarma-se: "Estamos com mais de 1 bilhão de cruzeiros de prestações vencidas de mutuários e, por falta de financiamento do BNH, devemos 1 ,5 bilhão aos empreiteiros". Por três vezes o governo procurou paliativos contra a pancada dos 128%, mas por três vezes falhou, pois todas as fórmulas desembocavam num só resultado: pagamento, num prazo de seis meses, uma mesma quantia em moeda corrente. De Belo Horizonte, onde empunha um rolo de papel com dezenas de metros comprimento, contendo centenas de assinaturas de protesto, José Gonzaga de Souza, presidente da Associação de Mutuários do Brasil, pretende enviar seu cartapácio ao presidente do BNH, José Lopes de Oliveira. Gonzaga ameaça: "Eu pretendo desmascarar o ministro Mário Andreazza, que iludiu o presidente João Figueiredo, fazendo com que ele assinasse um decreto que em nada resolve a situação dos mutuários" .
Andreazza diz ter feito o possível e, mesmo sem dispor de uma solução a oferecer, mostra-se solidário com os descontentes. "Considero o Sistema Financeiro da Habitação uma das coisas mais sérias já implantadas no país", diz o ministro. "Por isso, não podemos permitir que os mutuários fiquem em condições de não poder pagar suas prestações." José Lopes de Oliveira, um técnico silencioso que fez sua carreira através de brilhantes exercícios de cautela política, foi ainda mais longe e, há duas semanas, previu audaciosamente no Senado que, a perdurar a situação econômica do país, o BNH poderá ruir dentro de um ano.
COBRANÇA INEXORÁVEL - Aos 19 anos de idade, o BNH está com a sobrevivência ameaçada porque ameaça explodir o orçamento de seus clientes. Há três meses, pela primeira vez em sua história, houve mais saques que depósitos no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Desde janeiro, pela primeira vez, caem sistematicamente os depósitos em cadernetas de poupança. E nesta semana, também pela primeira vez, o Sistema Financeiro da Habitação corrigirá as prestações num percentual superior ao que valeu para as correções de salários. A UPC, moeda em que o BNH recebe, subiu 128% nos últimos doze meses enquanto o INPC - Índice Nacional de Preços ao Consumidor -, usado para corrigir a moeda com que são pagos os salários, subiu 118%. Desse paradoxo livraram-se, graças a uma lei esquecida, os funcionários públicos. Um advogado de Brasília descobriu que aos funcionários era dada a garantia de que os reajustes não ultrapassariam as percentagens de seus aumentos. Foi à Justiça e obteve uma liminar. Receoso, o BNH recuou e, por decreto do presidente Figueiredo, os funcionários só pagarão 82% de aumento. A diferença será coberta pelo banco.
Para quem não é funcionário público, os 128% serão inexoravelmente cobrados, quer numa só pancada, quer em diversas, de acordo com as fórmulas oferecidas pelo BNH. Nesse grupo, onde estão mais de 3 milhões de mutuários, vicejam três atitudes diversas. A primeira, que deverá ser adotada pela grande maioria, será reclamar e pagar. "Tenho um salário mensal bruto de 350.000 cruzeiros. A prestação deverá levar 230.000, mas mesmo assim continuo achando que pagar aluguel é jogar dinheiro fora", diz o engenheiro eletrônico Flávio Selmo Júnior, 30 anos, casado, com dois filhos. Evidentemente, Selmo não poderá continuar vivendo no apartamento que comprou no bairro de classe média do Brooklin, em São Paulo. Vai alugá-lo e, enquanto as coisas não melhorarem, irá com a família para a casa dos pais. Para ele, o sonho da casa própria continua.
A CORDA NO PESCOÇO - Para o segundo grupo, contudo, o sonho se acaba. Nele estão as pessoas que venderão seus imóveis num mercado que deverá entrar numa baixa cruel, ou o devolverão ao agente financeiro, a empresa junto à qual fizeram a dívida. "Aqui a maioria das pessoas já está com a corda no pescoço e agora, com o aumento da prestação, elas acabarão de se enforcar", diz Aglacir Rocio de Lima enquanto coloca seus móveis no carro da mudança e desiste do apartamento de 40 metros quadrados num conjunto a 18 quilômetros do centro de Curitiba. Seu marido, Agnaldo, é funcionário da Rede Ferroviária Federal, ganha 58.000 cruzeiros e não teria os 17.000 da prestação de julho. Quando os 128% chegarem eles estarão sob o teto dos pais de Agnaldo.
A nova prestação bateu forte sobretudo na classe média e, ao feri-la, atingiu-a no que ela tem de mais sensível: o padrão de vida. No Rio de Janeiro, o engenheiro Fernando Antônio Rangel Lana, 30 anos, e sua mulher Sandra, da mesma idade, conseguiram as chaves da casa própria há dois anos. Compraram um pacato apartamento de sala e dois quartos no bairro de classe média da Tijuca. Com o reajuste o apartamento tornou-se uma fera. Rangel Lana fez todas as contas possíveis, inclusive a da utilização do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço para abater o valor das prestações e rendeu-se. Com 230.000 cruzeiros de salário não poderia enfrentar os 158.000 de prestação. "Acho até que nós tivemos sorte", diz, "pois conseguimos vender o apartamento." O casal procura alugar um imóvel em Copacabana e Sandra confessa: "Afinal, estamos muito jovens para ficar neste sufoco" .
'VOU PARAR DE PAGAR' - Na terceira ponta está o grupo que pretende enfrentar o BNH e decidiu-se pela suspensão dos pagamentos. É o caso da advogada paulista Lígia Ribeiro de Oliveira, 38 anos, proprietária de um apartamento de sala e quarto num edifício que lhe oferece o conforto de uma piscina, no bairro do Paraíso, perto do centro. Ela teria que pagar 216.000 cruzeiros e avisa: "Já tomei minha decisão. Vou parar de pagar e quero ver o que vai acontecer" .
É possível que ela venha a perder o apartamento caso não mude de idéia, mas, até lá, será para o BNH um adversário tão temível quanto o são os 128% para os mutuários. O fantasma da inadimplência, seu subproduto, as casas vazias, devolvidas e difíceis de ser revendidas, são os fantasmas que assombraram o presidente do BNH, levando-o a temer pela vida de todo o sistema federal de habitação. Para receber o que lhes é devido, as empresas de crédito imobiliário sempre dispõem da ameaça contratual de tomar de volta os imóveis, sem devolver nada do que já foi pago. Essa ameaça, porém, perde força se uma empresa se vê diante da possibilidade de transformar sua carteira imobiliária num conjunto habitacional. Não lhes interessa receber de volta em tijolos, telhas e cimento uma quantia que emprestaram em dinheiro bom: Unidades Padrão de Capital, sujeitas a reajustes, e não cruzeiros, dinheiro ruim, sujeito a inflação.
O MONSTRO DO ATRASO - "De todos os perigos o maior é a inadimplência", diz José Lopes de Oliveira. E explica: "Sem o dinheiro arrecadado com o pagamento das prestações, o banco simplesmente ficará sem recursos para cumprir a sua finalidade, que é a de financiar mais moradias". De fato, é para o índice vital da inadimplência que estão voltadas as atenções do BNH, do Ministério do Interior e até mesmo do Palácio do Planalto, onde se sabe que algum remédio heróico deverá aparecer caso os mutuários indiquem que efetivamente não têm como pagar. Tão delicada é essa questão que o BNH recusa-se a fornecer dados a seu respeito, limitando-se a informar que ela hoje está em tomo de 18%, quando há poucos anos esteve em 12%. Para o BNH, porém, inadimplente é o mutuário que atrasa a terceira prestação consecutiva, e não a primeira. Em alguns pontos do país, quer pela extensão da crise econômica, quer por dificuldades sociais, pagar a prestação da casa tomou-se exceção, enquanto a regra é esperar. No interior de Pernambuco,sobretudo na região mais assolada pela seca, a inadimplência já chegou a 90%, segundo os dados da Cohab. "É preciso reconhecer que o Banco Nacional da Habitação pertence ao conjunto da economia brasileira e como tal recebe os fluxos e refluxos da maré", ressalva José Lopes de Oliveira, atribuindo a crise que preside a fatores externos, com o mesmo tipo de raciocínio usado pelo governo federal para atribuir à crise internacional as dificuldades da economia brasileira. Nessa linha, o Brasil continuaria a ser um país sem problemas e o BNH uma ilha de apartamentos baratos se, de fora, não tivessem vindo maus ventos. Esse argumento, porém, não explica por que o BNH enredou-se numa conta socialmente inviável enquanto outras instituições financeiras, privadas, conseguem ter seu melhor período de lucros precisamente numa época de crise. As contas do BNH não fecham porque há uma crise, mas isso também sucede porque ele foi dirigido, desde sua fundação, na crença de que jamais haveria crise que o Planalto fosse incapazde resolver. Colocada essa premissa de infalibilidade, comum à tradição estatal brasileira, montaram-se políticas e programas, construíram-se sedes luxuosas e criaram-se quadros pantagruélicos de funcionários de acordo com o planejamento do desejável. Agora verificou-se que se desejava o impossível.
O PREÇO DA SOBERBA - Se o BNH está metido na maior crise de sua história, que custa o sono de milhões de mutuários, esse é o preço que o poder público paga, dezenove anos depois, por ter tido a soberba de acreditar-se tão poderoso a ponto de planejar, controlar, dirigir e fiscalizar a política habitacional do país.
Um exemplo banal do absurdo pretendido pode ser achado na indústria e comércio de automóveis. Para permitir que os carros ficassem mais acessíveis, as montadoras incentivaram a criação de consórcios. Neles, a cada mês os preços sobem e os consorciados pagam. Em contrapartida, quando não há consorciados e há milhares de carros nos pátios, empresas como a Volkswagen fecham seus balanços com prejuízos de dezenas de milhões de dólares. Com o programa habitacional pretendeu-se criar um sistema perfeito. Nele, as empresas de crédito imobiliário recebem depósitos nas cadernetas de poupança e, com o poder moderador do BNH, que está montado sobre o cofre do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, financiam imóveis. Se tudo dá certo, o mecanismo funciona, mas se dá errado, "o refluxo da maré" não tem dique onde se vá chocar, pois a solidez das companhias de crédito imobiliário está garantida por lei, já que o governo tem a obrigação de honrar todos os depósitos nas cadernetas até 12,5 milhões de cruzeiros.
O MILAGRE DE CLASSES - Nascido sobre um mercado imobiliário não confiável, pois os bancos privados afastaram-se desse setor com a alta da inflação da década de 50, o BNH entrou em cena juntamente com o instrumento financeiro que viabilizaria os financiamentos de casas próprias: a correção monetária. Ao nascer, porém, o banco se propunha resolver dois problemas semelhantes na aparência e diversos na realidade, o financiamento de imóveis para a classe média e a redução do déficit habitacional das camadas mais baixas da população. "O banco nasceu com um dilema. Tem vocação social, mas é um banco e, portanto, precisa remunerar o capital aplicado", diz o arquiteto Carlos Nélson Ferreira dos Santos, chefe do Centro de Pesquisas Urbanas do Instituto Brasileiro de Administração Municipal. Para ele o BNH deveria deixar de atender à classe média, voltando-se exclusivamente para a faixa de assalariados entre um e quatro salários mínimos, pois "não é possível continuar tentando fazer milagres, atendendo a todas as classes sociais" .
E mesmo em matéria de milagres, pouco se tentou. "Em 1975, apenas 3% do orçamento do BNH eram destinados para a construção de moradias populares" , ensina Gabriel Bolaffi, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, para quem "o banco foi criado muito mais para atender os requisitos políticos dos governos que conduziram o efêmero ‘milagre brasileiro' do que para resolver o problema habitacional do país". De fato, por mais de dez anos o BNH foi sobretudo uma agência imobiliária para a classe média. Passados os ventos do "milagre" a instituição, rica e já montada numa burocracia de 8.500 empregados – 2.000 a mais que a agência federal de habitação do governo americano -, um orçamento de 1,1 trilhão de cruzeiros e uma das mais luxuosas sedes da "privilegiatura" nacional, viu-se obrigada a arcar com os custos de grandes obras de infra-estrutura urbana. Em suma, estatizou-se o problema de moradia, que, em países como os Estados Unidos, onde o total dos empréstimos é de 296 bilhões de dólares (94 bilhões só no ano passado), essas operações são feitas por 14.500 bancos e 3.500 caixas de poupança privadas.
Nada no BNH foi feito à força. O banco e sua política, subordinados ao Ministério do Interior, foram usados para fins de propaganda (que, em muitos casos, irritam os próprios mutuários. Com freqüência, tanto o presidente do BNH quanto o ministro do Interior orgulham-se de ter construído dezenas de milhares de casas. Não há nos arquivos do sistema habitacional brasileiro um só ministro que tenha agradecido aos mutuários por terem pago as casas que eles dizem ter construído, permitindo sempre a impressão de que teriam sido dadas de graça.
PACTO COM O DIABO - No momento em que o BNH se opôs financiar casas para a classe média, conjuntos para as classes mais baixas e obras sanitárias para as zonas suburbanas, fez uma aposta com o diabo, transformando as leis do mercado m programas de metas. Assim, mesmo uma época de crise, não houve na história do BNH nem na do Ministério do Interior um só ano em que seus dirigentes desistissem de anunciar a construção de algumas centenas de milhares de casas, como se não existisse um meio ambiente econômico em torno destas intenções. Em países que têm um sistema estável de financiamento à casa própria, as condições de mercado são decisivas no número de habitações construídas ou vendidas a cada ano. Se as taxas de juros estão altas demais, por exemplo, encarecendo muito o preço das prestações, a quantidade de casas negociadas dentro do sistema cai verticalmente - foi o que aconteceu nos EUA nos dois últimos anos de recessão, quando a construção civil para habitação praticamente parou. Se, ao contrário, a situação econômica permite prestações mais acessíveis, o sistema se expande.
Nos quase vinte anos de existência do BNH tornou-se possível, sem dúvida, o acesso de um número considerável de brasileiros à casa própria. Até dezembro de 1982 o sistema havia financiado 4.071.000 imóveis residenciais em todo o país, dos quais 407.000 já foram integralmente pagos - sobrando, assim, no momento, 3.664.000 contratos cujas prestações estão sendo saldadas. São números expressivos. Eles mostram que foram compradas através do BNH quase 40% de todas as 11 milhões de casas próprias existentes nas cidades brasileiras, segundo o censo de 1980 - que, por sua vez, representam a maioria do grande total de pouco mais de 18 milhões de domicílios urbanos, próprios e alugados, que existem no Brasil. Muitas casas e apartamentos foram construídos e vendidos desde a criação do BNH .
Mas o sistema financeiro a que se devem submeter os compradores começa a se revelar inviável.
Além disso, o Sistema Financeiro da Habitação foi usado indevidamente para remendar buracos em sociedades privadas e na caixa do governo. "No momento em que o BNH começou a financiar exportações e a comprar ORTN sem liquidez, financiando o déficit público com recursos destinados à casa própria, surgiram os primeiros sinais de erosão", denuncia Maurício Schulman, ex-presidente do Banco, hoje diretor da Bamerindus Crédito Imobiliário. Tudo isso sucede precisamente numa época em que todos os comandos de captação do BNH indicam sinal de perigo. Seu grande patrimônio são os depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, que equivalem a três vezes o meio circulante brasileiro. Em abril passado, pela primeira vez em quase 20 anos, o valor dos saques sobre o Fundo - 112,6 bilhões de cruzeiros - superou o de depósitos - 100,5 bilhões - numa demonstração do efeito perverso que o desemprego leva para dentro do próprio Tesouro Nacional. O segundo cofre do sistema, onde se sustentam as sociedades de crédito imobiliário, é o das cadernetas de poupança e dele também veio um sinal de alerta. Entre janeiro e maio 208,4 bilhões de cruzeiros fugiram das cadernetas, que há dois trimestres perdem depósitos.
O MEDO DE JULHO - O dinheiro foge das cadernetas para cobrir buracos no orçamento doméstico ou para gozar do conforto de melhores investimentos. Agora, o presidente do BNH teme que se dê uma nova sangria, pois "enquanto as cadernetas oferecem uma remuneração de 6 a 7%, os bancos podem bancar papéis com até 10% de juros reais, e isso afetaria a captação". Na mesma linha, raciocina o corretor carioca Adolpho de Oliveira: "No início de abril, na virada do primeiro trimestre, o sistema perdeu 304 bilhões de cruzeiros. Em julho se espera esse mesmo desastre".
Por mais que o BNH demonstre que há um "refluxo da maré", os 128% de aumento das prestações continuarão do mesmo tamanho e como a maioria dos mutuários está na classe média, a mais atingida pelas medidas com que o governo procura enfrentar a crise econômica, é do coração das grandes cidades que se ouve a irritação. "A classe média está irada, pois ela tem capacidade e vontade de crescer, mas não lhe estão dando oxigênio", diz Márcio Fortes, presidente da João Fortes Engenharia e ex-secretário-geral do Ministério da Fazenda. "Nos últimos três anos a classe média perdeu 15% de seu poder aquisitivo e perderá mais com a mudança na lei salarial. Ela pagou um preço alto demais e o governo deveria poupá-la de novos sacrifícios", acrescenta José Eduardo de Oliveira Penna, ex-diretor do BNH.
MAL DE BELÍNDlA - A declaração de Penna é um exemplo da ambigüidade que rondou a política nacional de habitação. Há dez anos, quando ele estava no BNH e a instituição era acusada de privilegiar a classe média alta com seus financiamentos, ele informava que "o BNH sempre foi e sempre será um banco. O objetivo social só será alcançado através da eficiência financeira. Por isso, precisamos financiar o mercado superior para, então, oferecermos juros baixos ao mercado popular". Ou seja, dentro do melhor espírito do milagre, a Bélgica formada pelos brasileiros com renda superior a dez salários mínimos deveria ter facilidades para a compra de imóveis a preços exorbitantes porque um dia eles financiariam casas para os brasileiros que vivem na Índia de menos de cinco salários mínimos. Deram-se simultaneamente a concordata da Bélgica e a ineficiência financeira e, como resultado, objetivo social do BNH ficará para ser alcançado daqui a muitos anos.
Para os mutuários incapazes de suportar o peso dos 128% de aumento, a questão social está à porta e, por enquanto, só lhes é dado o caminho da articulação através das recém-nascidas associações, algumas das quais revelam mais capacidade de servir a grupos políticos que as patrocinam do que em atender com resultados reais às pessoas que mobilizam. A mais audaciosa das iniciativas postas em prática até agora saiu da Associação dos Mutuários da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ela recorreu à consultoria do advogado Sérgio Bermudes, nacionalmente conhecido depois de 1978, quando concebeu uma formulação legal através da qual obteve a condenação da União junto à Justiça Federal pela morte, nas dependências do DOI-CODI paulista, do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. Bermudes acredita que a solução agora seja política, mas ainda assim vale-se de uma argumentação jurídica: "No momento em que uma pessoa se habilita a comprar um imóvel financiado, ela tem que provar uma renda compatível com a prestação vindoura. Esta prova tem duas finalidades: a primeira, verificar se ao adquirir o imóvel a pessoa está colocando em risco a subsistência da família, e a outra, garantir que o governo receberá de volta o que emprestou. Há no Direito um princípio que reza em latim: Sic Rebus Stantibus, ou seja, as coisas devem se manter as mesmas enquanto a situação é a mesma. Portanto, se as coisas não são mais as mesmas, por que manter a mesma situação?"
COMO FlGUEIREDO - Segundo esse raciocínio, se a situação dos mutuários mudou, num caráter geral, de tal forma que se rompeu o equilíbrio financeiro estabelecido na operação de compra da casa, devem-se rever as condições de pagamento.
A primeira vista o argumento de Bermudes é tão simples quanto ingênuo, mas acreditar que ele esteja a perder tempo por isso seria o mesmo que considerar uma perda de tempo o discurso do presidente João Figueiredo nas Nações Unidas, no ano passado. Lá, Figueiredo advertiu que as condições da economia mundial tinham mudado tanto, para pior, que se essa tendência não se modificasse os países em desenvolvimento sofreriam um tal abalo que ele se refletiria sobre o resto da economia mundial. Menos de um ano depois, assim como os mutuários do BNH, o Brasil começa a colecionar argumentos em favor de uma serena moratória de sua dívida externa, em relação à qual conseguiu dos bancos internacionais algo que o BNH ainda não cogita oferecer no mercado interno: o atraso de um ano na amortização do principal, honrando apenas o pagamento dos juros.
O SONO DE JOSÉ LOPES - É certo que há na cartola do governo diversas medidas para serem tomadas em relação aos mutuários do BNH diante do risco de uma epidemia de inadimplência. A mais óbvia das defesas será uma grande campanha de esclarecimento para que cada mutuário, antes de desistir da casa ou de pagar a prestação, procure um entendimento com o agente financeiro. Lá ele pode obter a prorrogação do prazo, solução eficaz para todos aqueles que já pagaram mais de um terço da dívida, pois mesmo a um custo financeiro alto o novo prazo permitirá que a prestação caia em até 20%.
Nenhuma facilidade, porém, será criada de forma a estimular soluções fáceis, que não custem aos mutuários sequer aborrecimentos burocráticos. Isso porque estima-se que haja dois tipos de mutuários e dois tipos de impacto para os 128%. Um, aquele que comprou seu imóvel antes de 1980, quando a correção monetária foi prefixada em 45% e a inflação real foi de 110,2%. Nesse caso, o benefício foi tamanho que tomando-se o exemplo de um edifício na Tijuca, no Rio de Janeiro, com apartamentos de sala e três quartos, a prestação, mesmo corrigida com os 128%, irá para 75.000 cruzeiros. No mesmo prédio, quem comprou o apartamento em 1981, terá a prestação reajustada para 230.000 cruzeiros.
Onde terminam os mutuários que não podem pagar e começam aqueles que estão à espera de uma oportunidade para dar um calote no BNH, só os primeiros dias de julho dirão. José Lapes de Oliveira certamente terá poucas noites de sono na próxima semana, pois irá para casa com um olho no quadro de depósitos das cadernetas e outro no índice de inadimplência de seu banco. Para bancar esse jogo ele tem 220 bilhões de cruzeiros em caixa, em papéis do Tesouro. Se o subsídio dado pela lei aos funcionários públicos, somado à inadimplência e às operações de socorro que a cada trimestre o banco é obrigado a patrocinar para sociedades de créditos, superar essa quantia, o BNH pedirá água. De certa forma, a água já está até estocada, pois o Banco Central, alertado para os riscos de julho, comprará ao BNH cédulas hipotecárias, num montante ainda indefinido porque indefinido é o tamanho do provável buraco.
Para o governo, a crise do BNH é o sintoma mais claro da chegada da recessão a seus próprios escritórios. Para ele, não é apenas o sonho da casa própria para a classe média que deixou de ser uma quimera a ser alimentada, mas o próprio sonho do BNH que começa a se acabar. Com uma diferença: não adianta pensar em devolvê-lo ao agente financeiro.

13 de dez. de 2010

Investir em imóvel é lucro garantido - crítica à matéria do correio braziliense feita pelo Fábio do blog opequenoinvestidor.com.br

Colegas do blog,
Reproduzo matéria postada no blog opequenoinvestidor.com.br na qual é feita crítica à matéria "jornalística" "desinteressada"  publicada no Correio Braziliense a qual afirma que Investir em imóvel é lucro garantido. Pena que quando a bolha estourar quem investiu com base na "matéria" não vai poder processar o jornal e o jornalista que escreveram esta atrocidade.
Abraços a todos,


Calma, leitor. Não sou chapa branca não. Nem mudei de ideia quanto à existência de uma bolha imobiliária perigosíssima que ronda o Brasil e, particularmente, Brasília.
O título desse post é o título de um artigo de um jornal de Brasília, o Correio Braziliense. Leiam a matéria, publicada ontem, dia 09/12/2010 (nota especial para as partes em negrito):
Investir em imóvel é lucro garantido Comprar imóveis é atualmente uma das melhores opções de investimento, graças à demanda elevada, ao cenário econômico favorável e à expressiva oferta de crédito. No Distrito Federal, os bons rendimentos levam investidores de diferentes perfis a ter a mesma percepção. “Muitas pessoas têm deixado de investir em bolsas de valores e poupança para comprar um apartamento, uma casa ou sala comercial. Isto está ocorrendo porque nos últimos 10 anos o setor valorizou muito”, conta Leonel Alves, diretor comercial de uma das maiores imobiliárias de Brasília. Ele lembra que, em 2000, um apartamento de três quartos com 100 metros quadrados estava avaliado em R$ 160 mil e custa hoje R$ 950 mil. Os números revelam uma valorização de quase 500%. “O preço de um imóvel na capital sobe, em média, 25% ao ano. No entanto, em locais como Sudoeste e Asa Sul e Norte, chega a haver picos de 40% de valorização anual”, diz. Para o diretor comercial, no Distrito Federal este é um investimento com lucro certo. Quem compra o primeiro imóvel e tem bons rendimentos já pode investir na compra de um segundo. “No meio imobiliário, a gente diz que dois imóveis pagam três, e três pagam quatro, ou seja, quem pode alugar dois apartamentos consegue comprar o terceiro com mais folga financeira”, sublinha Alves. Outro bom negócio é comprar lojas ou salas comerciais, que são certeza de valorização, além de gerarem um bom aluguel. Conforme o Boletim de Conjuntura Imobiliária, divulgado em setembro, os maiores preços de venda e aluguel de lojas são encontrados em Águas Claras, enquanto as salas comerciais mais caras e rentáveis estão em Brasília, sobretudo na Asa Sul. Foi pensando em fazer um pé de meia que o comerciante Adrian Carvalho, de 38 anos, começou a investir em imóveis há seis anos. “Desde pequeno, via que as pessoas mais abastadas tinham muitos apartamentos. Então, tracei um objetivo e percebi que era o melhor investimento”, afirma Carvalho. Com uma loja, três quitinetes e um apartamento de três quartos, ele garante que vale mais a pena investir em imóveis pequenos. “O melhor retorno financeiro está no valor do imóvel. Não vale tanto pelo aluguel, porque hoje corresponde a menos de 1% do preço do apartamento”, explica. O investidor acredita ser mais lucrativo comprar e alugar quitinetes: “Minha experiência mostra que apartamentos com mais de dois quartos dão mais despesa, porque a manutenção com reforma é maior. Além disso, imóveis menores são mais fáceis de achar locatário e podem ser alugados por porcentagem maior de seu valor”. Compra coletiva Mas cada investidor tem sua maneira de ganhar dinheiro. O também comerciante Fernando Oliveira, por exemplo, prefere investir em imóveis maiores. A cada pré-lançamento, ele e amigos se preparam para comprar várias unidades. “Compramos cinco a 10 apartamentos por lançamento. Dependendo do tipo de imóvel, esperamos valorizar para revender ou mantemos como patrimônio para alugar”, diz. Segundo Oliveira, o grupo só investe em quitinetes e apartamentos pequenos para revender. “Essas obras ficam prontas em aproximadamente dois anos, então quando está próximo do lançamento nós revendemos o imóvel pelo dobro do capital investido”, comenta. Os apartamentos com mais de dois quartos são mantidos para alugar. “Como somos quase 10 amigos, não vale a pena distribuir aluguel de quitinete. É melhor fazer isso com apartamentos maiores”, esclarece. FINANCIAMENTOS DE BANCOS DISPARAM (…)

A partir daí, a matéria tece considerações sobre o aumento de crédito no setor imobiliário. Vamos nos concentrar nos trechos que transcrevi. Primeiro, o título. Fantástico, não? Uma matéria “jornalística” que estampa, em letras garrafais, que investir em imóvel é lucro garantido. Se eu escrevo um texto dizendo que investir em ações é lucro garantido, me chamam de louco, me apedrejam e, quem sabe, até me processam. Quem tiver prejuízo no mercado de ações ainda vai arrumar um jeito de me processar pra eu pagar o prejuízo que teve. É por isso que não alardeio lucros certos: isso não existe. Quer investir em ações? Faça-o por conta e risco. Eu acredito que é lucrativo, mas que você deve tomar cuidado e estudar muito antes de aplicar suas economias no mercado. Esse sou eu, o blogueiro responsável que está tentando incutir um pouco de juízo na cabeça alheia. Mas aí um jornal da capital da República publica uma matéria em que praticamente promete uma máquina de produzir lucros perpétuos para seus leitores. Será que o jornalista que escreveu a matéria (cujo nome convenientemente não aparece no texto, havendo uma indicação enigmática da “Redação”) sabe alguma coisa de economia? Será que um leitor desavisado do jornal que resolver investir em imóveis agora e, por acaso, tiver prejuízo, vai ser ressarcido pelo jornal? Afinal, uma matéria cujo título é “INVESTIR EM IMÓVEIS É LUCRO GARANTIDO” transparece segurança. Quem vai discordar? Só um blogueiro maluco da capital, que resolveu aprender um pouco de juros compostos mesmo… Mas vamos em frente. O primeiro entrevistado é Leonel Alves, identificado como diretor comercial de uma imobiliária da capital. Ele diz, segundo a matéria, que “os números revelam uma valorização de quase 500%. “O preço de um imóvel na capital sobe, em média, 25% ao ano. No entanto, em locais como Sudoeste e Asa Sul e Norte, chega a haver picos de 40% de valorização anual”. Para reforçar sua tese, ele argumenta com um exemplo concreto: um apartamento que valia R$ 160.000 em 2000 e que, hoje, está avaliado em R$ 950.000. Eu resolvi fazer umas continhas, que você pode acompanhar abaixo:

Que conta maluca é essa? É que eu adoro testar o raciocínio alheio. O que eu fiz na tabelinha foi aplicar a taxa média de valorização dos imóveis anunciada. Pois é, em 15 anos o apartamento cujo preço, hoje, é R$ 950.000,00, valerá R$ 27.000.000. O plano piloto, zona central de Brasília, só vai ter milionários. Quem tiver 4 apartamentos, vai ter R$ 108.000.000, mais que o valor da mega sena. Nesse ritmo, em mais quinze anos alguns brasilienses estariam na lista dos mais ricos do mundo, segundo a Forbes. Duvida? Mais 15 anos de juros compostos calculados à taxa de 25% ao ano, e cada apartamento valerá R$ 250 milhões. Em mais 7 anos, R$ 1 bilhão. Até eu quero entrar num negócio desse. Besteira? É essa a conta que o jornal está fazendo para convencer você que investir em imóveis, hoje, é um negócio fantástico. Nem a inflação conseguiria explicar um aumento de preços tão absurdo.
O melhor exemplo de que tem muita gente hipnotizada por essa conversa é a segunda entrevista, com o sr. Adrian Carvalho, que diz o seguinte: “O melhor retorno financeiro está no valor do imóvel. Não vale tanto pelo aluguel, porque hoje corresponde a menos de 1% do preço do apartamento”. Ou seja, o bravo investidor compra imóveis sem nem se preocupar com o valor do aluguel (aliás, em Brasília, a relação entre o aluguel e o preço do apartamento é muito menor do que 1%). O que interessa é a valorização do imóvel. Fé cega na manutenção do ritmo atual de crescimento dos preços. Se você acredita que um imóvel que vale R$ 950.000 hoje vai valer R$ 27.000.000 em 2020 ou R$ 250.000.000 em 2035, enfie a cara no financiamento e compre. Por sua conta e risco.

O que me preocupa ao ler uma matéria como essas é o perigo em potencial. Não se mostra o outro lado; o lado de quem acredita que estamos em uma bolha especulativa imensa, que vai trazer prejuízo a muita gente se algo acontecer no crédito. É nesses momentos de irracionalidade, em que a coletividade acredita que o único caminho dos preços de um ativo é “para cima”, que as chances de uma bolha estar se formando se tornam maiores. Mas os jornais, muitos deles patrocinados por construtoras e imobiliárias, não se preocupam em mostrar isso.

Quando a bolha estourar, vão dizer que era inesperada, que todo mundo foi pego de surpresa. Como aconteceu nos EUA: havia muita gente boa, com credibilidade, alertando para os excessos de concessão de crédito (como, aliás, está ocorrendo aqui), mas os jornais não acreditaram. As pessoas continuaram se endividando para comprar casas novas. Da mesma forma, no dia que os excessos se corrigirem por aqui e as pessoas tiverem prejuízo, os jornais vão mostrar quem tomar prejuízo como coitadinhos, vítimas dos malvados banqueiros, que deram crédito a quem não tinha emprego seguro. Pra ficar bem na foto, vão dizer que a culpa é das construtoras (muitas das quais, falidas, não vão mais patrocinar os jornais), que financiavam os imóveis com prestações ridículas, deixando a bomba estourar no valor das chaves. Besteira. A culpa é dos banqueiros, sim, e também das construtoras.

Mas a culpa será, principalmente, da ganância dos atuais compradores. De quem está “flipando” imóveis, comprando apartamento para vender dois anos depois com um lucro de 70% e usando os lucros para comprar ainda mais imóveis. Quem está financiando o apartamento novinho em folha pagando prestação de R$ 500 e deixando para se virar para pagar as chaves sabe lá Deus como. A ganância será sua desgraça.